ILUSÃO
Andei por muitas ruas e avenidas, por muitos becos, caminhos
largos e estreitos. Enfim passei por muitos lugares dos quais guardo ainda na
memória fragmentos daquele meu andar. Só não sei exatamente quem era aquele eu,
quando hoje me refiro e falo de mim!
Em cada esquina que parei acabou ficando escrito um
signo, para logo em seguida interromper uma pausa, quando precisei escolher um
destino.
E até chegar aqui devo ter seguido à direita e à
esquerda, embora na ilusão de que seguisse em frente, subindo ou descendo.
Sem saber subi escadas e desci ladeiras, mas talvez
até em breves momentos por terreno calmo e plano caminhei!
E de todos os signos, das pausas e marcas, espinhos
e gozos, hoje a minha afeição mais forte é por um pessoal eu assinalado nas
legendas claras de um caminho em frente, cujas setas e placas indicando a
direção guardam detalhes adquiridos pelos sentidos pela observação e um pouco de
disciplina.
E por ser contemporâneo de um tempo romântico da
minha cidade quase natal, meu coração insiste em recordar cada palmo de chão
que nela percorri.
Ainda lá estão ruas, praças, embora alguns edifícios
tenham sido derrubados e outros, infelizmente ruíram.
Durante a noite sempre retorno a esses lugares em
sonho, mas sou tomada por grande apreensão na hora de voltar para a minha hipotética
casa, à qual nunca sei como voltar, por não saber quem sou aquele eu do sonho,
que não tem noções do endereço.
Talvez a causa seja não ter grandes pretensões
materiais, nem fortes apegos a que persiga.
Também não acalento entusiasmo emocional que me
empurre pelo desejo instintivo, nem a sonhos belos embalo na pré-noite. Apenas o
silêncio cauteloso, às vezes até meio covarde, mas sempre temperado com um
pouco de poesia.
Mas seja qual eu em mim exista nesse espaço noturno que
nem sempre é reflexo do homem real procedente do dia, raras vezes tenho sonhos
claros.
Penso que é mesmo fenômeno da Maia Budista, segundo
a qual tudo no universo é ilusão, e como estou e vou neste mesmo verso, não
seria possível ter sonhos precisos em lugares verdadeiros, se eles não existem!
Nem eu próprio na totalidade individual existo!
Mas naturalmente sou como sou e vivo o ser revelado
pela ciência neurológica, que anuncia muitos eus e nega um ego individual – mas
eu não acredito nessa lorota – enfiando no mote de sua fundamentação as idéias
filosóficas distorcidas do orientalismo.
Não é verdade que o budismo tradicional defenda essa
crença, de que muitas manifestações de naturezas diferentes se manifestem,
enquanto entes independentes da consciência de um ser, que interagem entre sim,
mas não têm identidade de um ego central, semelhante ao criador supremo.
Nesse caso também a consciência do ego não poderia
existir, por absoluta falta de uma identidade central que se reconhecesse no
dia seguinte, por exemplo, como o sujeito de ontem.
Tendo mais de uma entidade ou múltiplos eus guardados
numa prateleira neurológica, esses indivíduos formariam um arquivo no máximo de
indivíduos como de um formigueiro, sem consciência pessoal.
E quando algo individual que naquele conceito
científico não existe e não é nada, mas se voa dali com a morte e o cérebro
cessa as atividades morrendo com o resto do corpo, o que afinal era o ser
pensante, antes de bater as botas?
Em nome de quem, antes da morte, aquele cidadão que
a tal pesquisa fizera reclama os seus direitos de autor? A qual seu eu estranho
ele seleciona?
O universo, segundo o conceito de Maia é uma ilusão,
e é perfeitamente compreensível, posto que deixe um dia de existir, assim como
a saudosa rua por onde um dia passei!
Mas há alguém, que no caso sou eu recordando aquela
rua; e até sinto uma infinita saudade por ela e pelo cheiro característico da
comida árabe, de presença marcante de vários restaurantes naquela região! É
evidente que eu não sei quem seja eu, mas sou. O quê, pouco importa!
Todavia o mais importante é saber e eu sei, hoje
tenho mais consciência do que tinha ontem, sem a confusão de ser este ou aquele
que percebe, pois, sou sempre eu.
Evoluiu dentro de mim e mantenho a consciência de
que sou o mesmo de ontem, e estou aqui a aprender com a experiência diária.
Devo ser então um centro específico com uma função
universal, tendo a memória para saber qual dentre tantos eus eu fui ontem, para
saber quem sou agora.
E eu supero sempre as expectativas de uma ciência materialista,
por mais rude seja eu e não permito me condenem à “massa” ou no máximo a uns
diferentes centros de relativa consciência autônoma, sujeitando-me à prisão de
um cérebro, como se eu fosse um formigueiro.
Há algo indecifrável no cosmo, que a ciência por
mais avançada não desvendará, enquanto não mergulhar profundamente na causa que
por trás dos efeitos se encontra.
Porque isto ela não pode negar: todo o efeito tem
uma causa. Mas são incríveis esses teóricos da área! E como se apegam aos
termos lingüísticos!
E até se esquecem e desprezam outros fatores como,
por exemplo, no caso da regeneração do cérebro, quem comanda por trás dos
neurônios a sua regeneração?
Uma natureza intrínseca, dizem eles, mas de onde vem
essa natureza? A resposta deles é a de que faz parte da própria natureza e aí a
mesma pergunta gira em círculos, até que se rompa e chegue ou esbarre na causa
das causas, mas eles por teimosia negam.
Mas de todas as experiências vividas resultará
sempre uma recordação em alguém por trás dos neurônios, e poderá ser afetada,
se estes forem lesionados no espaço cerebral reservado à memória, por ser o
cérebro o processador das informações; mas esse cérebro jamais será o senhor da
consciência.
O ser oculto, enquanto ego superior paira sobre o inferior,
que não desperta para a sua realidade universal, mas é quem mais ou menos usa
as regiões cerebrais e seus habitantes, que são os neurônios.
Já a consciência central representa a quantidade de
informações acumuladas ao longo do tempo de conceitos, teorias, educação,
formação, religiosidade, espiritualidade, alimentação, conceitos de bem e de mal,
etc.
E é o que ao fim resulta como entidade (ente
civilizado) individual, mas em conjunto forma a civilização global afetada pelos
conceitos dominantes, tanto científicos quanto religiosos, tanto políticos
quanto educativos e sociais, numa forma mental coletiva ainda muito atrasada,
enquanto modelo ideal para o homem idealizado há milhões de anos na mente
insondável do Eterno, e até revivida mais claramente na Grécia antiga, no
conceito do EU.
Mas em cada indivíduo haverá uma representação
diferente, não obstante o cérebro ser igual em todos e a substância única que lhe
dá a forma!
Em mim, porque a poesia insista em fazer porto,
mesmo eu não estando apto a satisfazê-la maracá terreno a saudade, e revolve-se
em nevoeiro noturno, fragmentada em lances recortados de imagens confusas.
E quando sonho quase sempre me encontro perdido, ou
tentando escalar pelo lado mais difícil um obstáculo intransponível. E ao voltar
para casa nunca sei onde moro, nem conheço o caminho de volta.
Em resumo, diria andar sempre perdido em meus
sonhos, com apenas uma certeza sentimental: tanto acordado quanto sonhando
sinto nas profundezas da alma uma infinita saudade.
Se eu tivesse que definir um ser para além dos
conceitos científicos e dogmáticos que sobreviva após a matéria, o chamaria de
saudade, ente saudade, mas sou um, dentre tantos hipotéticos outros.
Isto naturalmente não é mera uma metáfora, é um
individuo, cujo termo em si nega qualquer conceito contrário. E quem tem juízo
ao espírito não é possível negar enquanto substrato ou essência desconhecida do
conjunto ego, do qual momentaneamente sou um ente saudade em estado de
consciência aportada e processada no cérebro.
Minha casa parece estar muito longe daqui ou de mim,
mas só por não ter havido, quem sabe, a realização de algum desígnio carmático.
Mas estas coisas mais as sinto do que as sei; aliás,
eu não sei nada! Minha imaginação estacionou à entrada de um túnel, no qual pressupunha
ao final encontrar raros conceitos e luminosas idéias que me conferissem
alegria e alguma realização pessoal, mas não pude seguir em frente, porque se
fechara nos limites da minha inteligência, ainda pouco desenvolvida.
Por isso sonho também de vez em quando com água,
barro e lama a servir-me de caminho, que imagino sejam o ambiente de embrião
primário.
Diante desse quadro haverá quem pergunte: - quem é
esse perdido? E eu respondo: - sou um eu confuso e meio atormentado, sim, mas em
busca de uma identidade real, um ego que de alguma maneira prova que ser é algo
muito acima de um conceito lingüístico, e jamais uma ilusão passageira entre
neurônios, que até se regeneram se extirpados.
Sou, enfim, como qualquer um, uma alma inquieta
dentro de um corpo já meio velho e cansado, protótipo de um ego universal
tríplice, cujo espírito seria a suprema inteligência ainda limitada, porque vertida
por um minúsculo orifício limita e só me permite compreender apenas o óbvio, na
triste condição de um ser ordinário, ou acorrentado Prometeu.
Como poderiam
então haver sonhos belos, a meio a este perdido caminhar noturno e raras vezes
colorido cujo destino é deveras glorioso?
Mas estou atento e alerta para com os modernos
sábios, porque desconheçam e mesmo conhecendo-os desprezam os velhos
iluminados.
Mas quando digo que eles sabem pouco ou nada, é
porque ninguém sabe muito, diante do mistério que envolve o porvir... E porque
seja este apenas o verso do verso de Deus e Deus é tão infinitamente Grande!
Mas além do mistério que envolve a vida, no conceito
mais elevado que não está ainda ao alcance dos homens há esperança de momentos
mais felizes para a humanidade.
Ainda à mercê de cantos estranhos e crenças
fantasiosas não obedece aos impulsos internos silenciosos, mas esses impulsos é
que vão construindo o indivíduo.
E se ainda prefere seguir a cabeça de um líder ou de
um ídolo, cujo resultado final está muito claramente escrito, um triste e
trágico quadro retrata em preto e branco a cor mundanal.
E assim todos imitam todos, e o mais esperto tira
partido e explora o mais fraco, sem o menor constrangimento. Tal é seu estado
de consciência perante a real essência da vida, que absolutamente ignora.
E assim se escreve a falsa história intelectual,
por regra fundamentada por um autor que se aproxime de sua compreensão e
entendimento, numa espécie de ciranda onde não é necessário pensar, nem criar, mas
citar, citar e citar desde que o citado tenha citado que por sua vez fez
citações.
Parece que ninguém quer mais criar novos conceitos
que irão modelar novas formas de arte, de ciência literária, nova maneira de
agir e sem desrespeitar os sábios de todos os tempos, ora substituídos por outros
duvidosos e modernos, mas muito citados.
Pessoalmente
não serei eu exemplo de nada por estar a viver dos fragmentos mentais de minha
memória, cuja sensação mais lúcida é meramente uma tremenda melancolia, que já
nem sei se é mesmo saudade. Porém indignado com o andar do mundo.
Compreendendo-se por mundo as pessoas que o compõem
e causam em nome da arte e da ciência desconcerto e intolerância, causando
tremendo estouro e violência, em cima dos mais fracos e pobres.
Para que o fútil na mídia se mantenha no alto e o
tal cidadão faça seu discurso científico, outro venda seu peixe político, ou o seu deus aos bocadinhos.