terça-feira, 2 de outubro de 2012

SONHO NO SONHO



Dentro de meu sonho antigo que já não sonho, enquanto dormia sonhei com um passarinho que se recusava a dormir no alto. Insistentemente o colocava em cima de alguma superfície elevada, mas ele descia para dormir no chão. Certamente ignorando o risco de por ali passar um gato, que eu previra colocando-o finalmente dentro de um armário a salvo em meu coração.

Quem em mim se fez teimoso pássaro não sei; menos ainda o que pretendia insistindo em descer ao chão. O armário nem imagino o significado, pois consciente dentro dele nada quero guardar embora reconheça que aí se encerra todo o meu trabalho quase embalsamado.

Até minhas composições em forma de canção num hermético armário vão trancadas! E não por que sejam rudes, mas ante muitas canções inúteis, inúteis fizeram-se também elas em apagadas velas.

Mas entre todas as aves canoras o rouxinol é o meu mais nobre pássaro cantor; em meus sonhos juvenis elegi-o em metáfora o símbolo do meu sonho de poeta que hoje não canta mais.

Com ele se calaram todas as minhas vozes da infância, secaram as silveiras da minha aldeia e em silêncio amordaçada calou-se no peito a canção de espírito. Em minha alma guardo de outrora, como único enlevo um nostálgico sentimento.

“Minha alma amanheceu amarga, do fel da noite nela vertido, qual colibri caído ao solo morto, por mel veneno ter bebido”, como em algum lugar no tempo e no papel já aí assim o tenha dito.

Ao vasculhar as profundezas da alma para num tratado psíquico fundamentar a teoria dos símbolos, a esta altura e do alto de meus avançados anos, já nem vale a pena.

Sonhei com um pássaro, que se recusava a dormir num poleiro alto e foi só o que sonhei. Se o quis proteger, foi por um desejo de na mesma condição proteger uma criança ante o perigo de atravessar uma rua movimentada, de carros em alta velocidade e a dirigi-los motoristas irresponsáveis!

O risco não é menor do que aquele do pássaro diante do gato! Ainda que minha alma não guarde mais a melodia da juventude, o gato e os motoristas irresponsáveis continuam em grave desafinação ante o pássaro e as crianças.

Pena que o rouxinol já não cante no silveiral da infância tão distante no tempo! Metáfora da juventude enrouqueceu e as suas penas desgrenhadas roubaram-lhe a dignidade.

Entretanto vivo ainda que os estertores de um tempo escuro, mas curiosamente abrasadamente ensolarado nos trópicos. E este calor infernal que à cabeça estonteia traz-me à boca uma secura félica e ao coração certo amargor adocicado... Experimente quem achar estranho adoçar o amargo!

E é assim que contemplo o silêncio e o vazio. Mas não o faço policiando ninguém, ainda que assaltem fortes aos meus olhos gestos tão estúpidos, e aos ouvidos vozes tão graves de pessoas ditas civilizadas! Por isso contemplar o silêncio e o olhar simples de pessoas boas é algo nobre, ante o olhar estarrecido a tanta grosseria dessa gente bárbara.

Mas envelheci por dentro e por fora. E quanto mais velhos mais surdos se fazem os que ainda deveria ouvir. Sim, eles fingem, mas já ler quanto ouvir não basta soletrar,é necessário ver atrás das letras as palavras que não foram escritas; e das que foram escritas excluir as que alguém recitou bêbado e não se devam ouvir.

Por isso é que também sendo os sonhos sonho, não importa ter sonhado com um pássaro que não queria dormir no alto e teve que dormir no armário... Mas é importante o mito do armário no sonho.

Não como armário, em si, mas pelo que pode guardar tanto como utilidade, quanto como inutilidade... Por isso está na hora de esvaziar os armários de coisas fúteis, considerando que todas as coisas que se possam guardar num armário são fúteis. E há mesmo quem guarde de tão concretas as suas idéias num armário de ferro; e na cabeça carregando farrapos que um dia casacos, vestidos, anáguas e outras antiguidades e até mágoas já foram.    
   

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