Dentro
de meu sonho antigo que já não sonho, enquanto dormia sonhei com um passarinho
que se recusava a dormir no alto. Insistentemente o colocava em cima de alguma
superfície elevada, mas ele descia para dormir no chão. Certamente ignorando o
risco de por ali passar um gato, que eu previra colocando-o finalmente dentro
de um armário a salvo em meu coração.
Quem
em mim se fez teimoso pássaro não sei; menos ainda o que pretendia insistindo em
descer ao chão. O armário nem imagino o significado, pois consciente dentro
dele nada quero guardar embora reconheça que aí se encerra todo o meu trabalho quase
embalsamado.
Até
minhas composições em forma de canção num hermético armário vão trancadas! E
não por que sejam rudes, mas ante muitas canções inúteis, inúteis fizeram-se
também elas em apagadas velas.
Mas entre todas as aves canoras o
rouxinol é o meu mais nobre pássaro cantor; em meus sonhos juvenis elegi-o em
metáfora o símbolo do meu sonho de poeta que hoje não canta mais.
Com ele se calaram todas as minhas vozes
da infância, secaram as silveiras da minha aldeia e em silêncio amordaçada calou-se
no peito a canção de espírito. Em minha alma guardo de outrora, como único
enlevo um nostálgico sentimento.
“Minha alma amanheceu amarga, do fel da
noite nela vertido, qual colibri caído ao solo morto, por mel veneno ter
bebido”, como em algum lugar no tempo e no papel já aí assim o tenha dito.
Ao vasculhar as profundezas da alma para
num tratado psíquico fundamentar a teoria dos símbolos, a esta altura e do alto
de meus avançados anos, já nem vale a pena.
Sonhei
com um pássaro, que se recusava a dormir num poleiro alto e foi só o que
sonhei. Se o quis proteger, foi por um desejo de na mesma condição proteger uma
criança ante o perigo de atravessar uma rua movimentada, de carros em alta
velocidade e a dirigi-los motoristas irresponsáveis!
O risco não é menor do que aquele do
pássaro diante do gato! Ainda que minha alma não guarde mais a melodia da
juventude, o gato e os motoristas irresponsáveis continuam em grave desafinação
ante o pássaro e as crianças.
Pena que o rouxinol já não cante no silveiral
da infância tão distante no tempo! Metáfora da juventude enrouqueceu e as suas
penas desgrenhadas roubaram-lhe a dignidade.
Entretanto
vivo ainda que os estertores de um tempo escuro, mas curiosamente abrasadamente
ensolarado nos trópicos. E este calor infernal que à cabeça estonteia traz-me à
boca uma secura félica e ao coração certo
amargor adocicado... Experimente quem achar estranho adoçar o amargo!
E
é assim que contemplo o silêncio e o vazio. Mas não o faço policiando ninguém, ainda
que assaltem fortes aos meus olhos gestos tão estúpidos, e aos ouvidos vozes tão
graves de pessoas ditas civilizadas! Por isso contemplar o silêncio e o olhar simples
de pessoas boas é algo nobre, ante o olhar estarrecido a tanta grosseria dessa
gente bárbara.
Mas
envelheci por dentro e por fora. E quanto mais velhos mais surdos se fazem os
que ainda deveria ouvir. Sim, eles fingem, mas já ler quanto ouvir não basta soletrar,é necessário ver atrás das
letras as palavras que não foram escritas; e das que foram escritas excluir as
que alguém recitou bêbado e não se devam ouvir.
Por
isso é que também sendo os sonhos sonho, não importa ter sonhado com um pássaro
que não queria dormir no alto e teve que dormir no armário... Mas é importante o
mito do armário no sonho.
Não
como armário, em si, mas pelo que pode guardar tanto como utilidade, quanto
como inutilidade... Por isso está na hora de esvaziar os armários de coisas
fúteis, considerando que todas as coisas que se possam guardar num armário são
fúteis. E há mesmo quem guarde de tão concretas as suas idéias num armário de
ferro; e na cabeça carregando farrapos que um dia casacos, vestidos, anáguas e
outras antiguidades e até mágoas já foram.
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