(viagem noturna de um desencarnado)
Passava agora por aquele
local tranqüilo, estranho e invisível, esse notável ser. Para defronte ao “desenho
roxo” e com surpresa estranha o enorme letreiro de esmalte branco, esquisito,
escrito na cor de vermelho sangue: “Casa do Desejo”. De repente desejara estranhamente
também ele, mas rapidamente recobraria a consciência ao lembrar-se da natureza
de cada desejo, porque já os sentisse e vivenciasse, mas no passado; e, naturalmente
sabia o que eles provocavam. Todavia por absoluta curiosidade pergunta-se: qual
o furor e o que significavam aquelas antigas sensações? Que sabor ainda teria
cada uma destas efêmeras impressões do mundo dos homens? Talvez o que fora um
dia “doce” fosse agora meio amargo! Mas ainda que absolutamente irresistível e agradavelmente
doce quanto tempo dura tal prazer e sabor? Deve então fechar os olhos sem
desejar, como aprendera cedo com as disciplinas iniciáticas, sim, é preferível
a olhos abertos cobiçosos cegos e mãos livres, ágeis querendo agarrar com força
todos os objetos do desejo! E assim revivia prontamente e a sorrir seguia em frente.
Contudo,
por todas as razões sabia bem que se tratava deveras e apenas de uma placa
escrita: “Casa do desejo”. E ele passava em frente e não mais que breves e
pueris sintomas reverberam nele, e os sentia brevíssimos enquanto velhos
sintomas astrais; nada mais que breves frações de segundo em que lembrava aqueles
sintomas do velho tempo já passado; mas já não desejava mais nada. Agora já possuía
um eixo bastante poderoso e firme, em todas as raízes... E recobrava
imediatamente o juízo decifrando o código de cada sentimento que passou por sua
memória astral, impondo-lhe breve enlevo emocional e relativa vontade. Afinal,
vivera-os em tempo oportuno e não mais haveria de surpreender-se com nenhuma
tentação carnal, acenando-lhe frivolamente com emoções de felicidade da ultrapassada
dimensão carnal.
Isto decifrado
e bem resolvido prossegue o seu caminho, no comando de seu corpo causal. E por
aquela rua escura e desconhecida, porém ciente de que se encontrava ao norte
daquele arcaico e remoto bairro; pois quando ao dobrar a primeira curva à
direita, deparar-se-ia com outra estranha casa, cujo letreiro de plástico
escuro e de mau gosto estético ostentava familiares palavras em amarelo ovo: “Casa
da Fé”. Parou, por instantes, mas não sentiu fé ali em coisa alguma.
Momentaneamente sentira até o astral muito pesado e denso do que poderia ser medo
e desconfiança aí gerados. E sentiu mesmo uns arrepios, ao deixar-se levar
àquele remoto passado...
Mas
aprendera a exercitar a vontade e a superar a antiga e cega fé e facilmente
recupera o equilíbrio por ser o senhor de si mesmo, e de ter o seu eixo bem
fundamentado em dimensões universais. Era o dono absoluto da sua vontade. E porque
reconhecesse as marcas de todos os elementos terrestres por onde tenha andado e
se criara, tal como está impresso em seu estado de consciência causal, para
além do cérebro, sabia... Não obstante este seu superior estado, é natural
sentir ainda saudade diante dos símbolos da sua infância humana, na terra.
Sereno segue em frente, como não poderia ser diferente, para não voltar
no tempo nem no espaço, sem se esquecer que ao dobrar ainda há pouco à direita
lançara olhares à esquerda... E aí viu num painel vermelho muito estranho, com palavras
escritas em amarelo deveras muito confusas numa combinação absolutamente
duvidosa – amarelo ovo, sobre o vermelho – efeito estranhíssimo da forma estética
corrompida de uma estrela ilegítima de cinco pontas. Muito mal composta com
formas corruptas, “ainda que essa estrela represente o sagrado em outra
circunstância”. (todas as estrelas, pouco importa o número de pontas) têm lugar
na simbologia sagrada. Mas esta, pelo aspecto que lhe causara não possui coisa alguma
séria nem sagrada, sequer era digna de se olhar mais de uma vez. Não ligou
então muito à esquerda com a sua estrela vermelha, e seguiu em frente sem dar
qualquer importância ao fato de ter também dobrado à direita.
Prosseguindo seu destino meio sem destino, não demoraria muito a se defrontar
com um pomposo edifício, ao qual identificava emblemática placa de bronze
escrita em amarelo ouro e muito bem lustrada em letras góticas, a palavra
“Magistério”. Mas, “Magistério com reticências na frente?” (...) Estranho,
estranhíssimo lhe parecera aos olhos e ao seu princípio do mental abstrato! O
que isso significa? Magistério? Quais seriam afinal os valores maiores e
ocultos daquela incógnita? Mas como lá não vira ninguém, seguia ele desprendido
e leve o seu caminho. Porém, logo na primeira esquina encontra uma marca
importantíssima: Uma confeitaria com o nome do Poeta Mor. E a caráter, como
logomarca, uma régia coroa...
Finalmente reconhecia os
símbolos e se encontrava geograficamente... Virando seu olhar à esquerda,
avista algo familiar em uma pizzaria, onde entra prontamente; deparando-se com
uma fotografia de um disco voador pendurada acima e atrás do caixa na parede. Lembra-se
de já ter visto antes aquela foto em sonho, reconhecendo também aquele local em
que sonhara com o Adepto, vestido de “Mestre de Gastronomia”. (Adepto é, para
quem não sabe um iluminado ser) Porém a pizza é real, de massa de pão, tomate,
mussarela e o alho frito. De alho frito, de excelente sabor. E ele invisível posiciona-se
ao lado do casal que a pedira, e saboreia a parte astral daquela delícia.
Certamente mais saborosa do que a verdadeira e material, cujo cheiro o atraíra
e a saboreava agora com superior paladar, sem interferir nos elementos
moleculares de peso, consistência, materiais e massa...
Borges é
quem fabrica as pizzas, apresentara-se ao casal, por justiça de boa qualidade,
num bairro que reconhecia como “Bexiga”...
Alta
madrugada, uma hora e meia da manhã, naquela altura já manhã seguinte; terminada
a refeição astral e encerrado o processo de saborear sem ter de pagar, porque
também de verdade nada comera, segue madrugada adentro a lamentar não ter sido
no interior de um navio, em vez de naquela pizzaria o sonho que tivera com o
Adepto vestido com a roupa de mestre internacional de cozinha, tal a nobreza de
seu chapéu...
Consciente
agora daquele antigo e magnífico sonho que tivera quando vivia ainda na carne,
segue seu destino recolhendo dados, constatando fatos, descobrindo coisas,
observando à sua volta os objetos e a senti-los através de uma ótica nova, astral;
todavia, ainda que tivesse essa possibilidade, sem mexer nem bulir no habitate
natural de cada espécie, respeitando cada ciclo de vida e sem urinar fosse num
portão alheio, fosse num simples tufão de grama e muito menos num especial
lugar, onde as pessoas guardam seus mais íntimos sentimentos, e as suas mais
belas recordações... Enfim, sem urinar em lugar nenhum, exceto em local
apropriado do qual já não necessitava.
E segue o
seu destino desviando-se não só do pipi, mas também de objetos sólidos e
malcheirosos abundantes pelos caminhos da noite, neste e em todos os bairros do
mundo. E embora seja um ser virtual por viver no plano causal sente a fadiga e
o desconforto da vida do lado de cá, sente o peso do “corpo” cansado, o mau
cheiro das ruas, e as cenas noturnas dos tristes e desgraçados excluídos...
Graças a estar do outro lado, não será aí importunado; nem pelos mendigos
alcoólatras na grande maioria, nem pelos pobres mendigos daquele e de todos os
bairros do mundo cheirando mal, todos esfarrapados, todos com fome; e quem
desgraçadamente consiga uns tostões, embriagado!
Ele,
habitante do Astral, mas não alma penada ou kamarrupa, Exu, enfim, nada
semelhante à alma mal assombrada: é, ao contrário desses um vitorioso, um dos
poucos que dedica sua vida a colher experiências num plano intermediário, já
sem o físico carnal; mas com uma veste apropriada construída por ele mesmo ao
longo do tempo, o seu Corpo Causal, podendo inclusive passar de um a outro
lado, até “comer pizza”; e se o quiser deixar-se ver pelos vivos de cá por
alguns momentos.
Abriu mão
de viajar na velocidade do pensamento para manquejar das pernas aqui na terra,
com as suas conseqüências...
Segue
então e desce a Rua 13 de Maio no sentido centro da cidade, repentinamente
parando na esquina com a Rua Santo Antônio, para rever ali cenas memoráveis de
um “livro” seu do passado... Noites de um tempo em que era ainda humano, vendo ali
agora alguns de sua época ainda presos que já nem estão na carne! Vivem do
mesmo lado que ele em berço etéreo de belíssimas ou terríveis ilusões,
inconscientes, ou andam ainda por ali sem saberem que já morreram. Enquanto ele
já não vive essa “morte” aonde vão os inocentes... Possuía um corpo superior, o
seu Corpo Causal.
Desfruta sua primeira
experiência de vida metafísica consciente, podendo e muito bem raciocinar;
coisa impossível para quem não tenha um cérebro! ...
Após breve
deleite da memória segue em frente, desta feita sem interrupções até o centro
da grande metrópole, de praças belíssimas, amplas e bem iluminadas; porém,
infelizmente muito mal freqüentadas; tanto por uns na carne, mas sem lei e sem
nada, bem visíveis e fedorentos, quanto por outros sem carne, mas com
pesadíssima matéria do baixíssimo plano astral, interativos, mas invisíveis aos
da carne...
A luz da
noite, artificial, começa a ser ofuscada pela luz do dia, quando amanhece na
maravilhosa cidade – São Paulo. Ele, invisível, senta-se num banco antigo da
pequena praça, que marca o cruzamento da Avenida São João com a Rua São Bento.
Naquele divino canto, onde o tempo clicou cenas maravilhosas e ergueu edifícios
magníficos, tal como a bolsa de valores. De repente as ruas enchem-se de gente e
a cidade ferve ao ritmo paulistano, que a não respeita o déspota vigarista, o prefeito
[a] miserável, o punguista das esquinas, o sonegador, o camelô, o malfeitor das
cidades grandes... Por regra por culpa de incapazes administradores, corruptos
e indignos governantes, todos auxiliados por incompetentes membros de uma
máquina velha e já muito alquebrados os seus braços, a um canto encostada, não
obstante o ar condicionado e o mais moderno computador, com as bênçãos das
câmaras de vereadores, deputados e senadores a legislar... Muitos com
impressões digitais com a direita, enquanto com a esquerda enfiam não se sabe
bem onde, para disfarçar o que à noite fazem com as duas... Alguns nem com as
duas juntas agarram muitas coisas, por serem mãos inábeis, grosseiras, mas
outros com um simples dedo transformam a comida pobre dos pobres em ricas
“polpas verdes” em qualquer banco e no conforto sentados à sombra da
ilegalidade e aí se encostam e depois deitam e dormem.
Levanta-se
daquele banco onde por momentos esteve sentado a matutar estas coisas, quando
se dirige ao interior da loja da esquina, onde se defronta com um enorme
espelho; sem levar já nenhum susto ao ver-se como era tempos atrás, quando
ainda vivia na carne com a idade de 40 anos, no início da década de 80. Sim, 1980
era o tempo em que por ali andara!
Saudade?
Um pouco; contudo colorida e feliz de quem recorda sem sentir mágoas, medos,
dor, mas também sem estar no plano do supremo mel ou Nirvana feliz gozando as
delícias dos falsos deuses, pois Deus verdadeiro tem muito a zelar no seio do
seu próprio ser, aonde vão inúmeras “ninhadas”; entre elas um duplo animal,
seguida de perto por outra vegetal e junto outra mineral em um grão de areia
muito agradável chamado terra e dentro deste universo, para aonde a galáxia vai
viajando.
Olha
novamente no fundo dos seus olhos, e a seu lado por não ser visto vê muitos
outros espelhando as suas vaidades e brejeirices. E lembra-se então do sonho
que tivera com o Adepto, quando este lhe mostrava cenas de seu país através de enigmática
peça teatral, cujos personagens tornar-se-iam reais no futuro, mas que agora já
são passados.
Via todo
festivo um psiquiatra com a camisa olímpica, mas apaga-se rapidamente a cena,
passando a outras não tão estranhas, mas deveras tristes. A estas nem é preciso
descrever, que todos as vêem e ouvem diariamente na televisão...
Muitas
cenas horríveis ele veria ao se defrontar com a foto de outro edifício monumental,
onde letras a ouro compunham a palavra Congresso... Era também esta palavra seguida
de reticências, mas já agora sabia ele o significado das reticências ali na
frente desse Congresso... Sempre estranhara estas reticências, embora por estes
três pontinhos tivesse grande respeito; mas desta feita, diante desses emblemas
públicos: Magistério e Congresso com reticências na frente, não fora capaz de decifrá-los,
mas sua antiga malícia revela-lhe com astúcia o que ali não se faz nem se
cumpre... Seria então naqueles dois edifícios onde ele viu “RETICENCIADOS” um lugar
onde se não faz nada?
Volta ele novamente ao presente e mais uma vez olha no
espelho onde vê refletidos os seus próprios olhos, quando percebe descer pelo
olho esquerdo uma lágrima. Simbolizava essa lágrima um distante estágio de
evolução, que milhões de seres sentem ao vivo na carne, com dor, fome,
injustiça, mas ele mais a decantava do que a sentia... Mas não foi também capaz
de sorrir, nem mesmo ao recordar uma linda flor se abrindo, nem mesmo quando a
bela flor se transformara em uma linda donzela sua aos beijos, quando recorda agora
os seus amores do passado. Nada o fizera sorrir, ao olhar no espelho. Cerra
então os olhos mais uma vez, e ao mergulhar no âmago do seu verdadeiro ser, vê refletidas
no espelho em amarelo ouro, as velhas reticências...