sábado, 5 de julho de 2014

RETICÊNCIAS

                        (viagem noturna de um desencarnado)

                   Passava agora por aquele local tranqüilo, estranho e invisível, esse notável ser. Para defronte ao “desenho roxo” e com surpresa estranha o enorme letreiro de esmalte branco, esquisito, escrito na cor de vermelho sangue: “Casa do Desejo”. De repente desejara estranhamente também ele, mas rapidamente recobraria a consciência ao lembrar-se da natureza de cada desejo, porque já os sentisse e vivenciasse, mas no passado; e, naturalmente sabia o que eles provocavam. Todavia por absoluta curiosidade pergunta-se: qual o furor e o que significavam aquelas antigas sensações? Que sabor ainda teria cada uma destas efêmeras impressões do mundo dos homens? Talvez o que fora um dia “doce” fosse agora meio amargo! Mas ainda que absolutamente irresistível e agradavelmente doce quanto tempo dura tal prazer e sabor? Deve então fechar os olhos sem desejar, como aprendera cedo com as disciplinas iniciáticas, sim, é preferível a olhos abertos cobiçosos cegos e mãos livres, ágeis querendo agarrar com força todos os objetos do desejo! E assim revivia prontamente e a sorrir seguia em frente.
                  Contudo, por todas as razões sabia bem que se tratava deveras e apenas de uma placa escrita: “Casa do desejo”. E ele passava em frente e não mais que breves e pueris sintomas reverberam nele, e os sentia brevíssimos enquanto velhos sintomas astrais; nada mais que breves frações de segundo em que lembrava aqueles sintomas do velho tempo já passado; mas já não desejava mais nada. Agora já possuía um eixo bastante poderoso e firme, em todas as raízes... E recobrava imediatamente o juízo decifrando o código de cada sentimento que passou por sua memória astral, impondo-lhe breve enlevo emocional e relativa vontade. Afinal, vivera-os em tempo oportuno e não mais haveria de surpreender-se com nenhuma tentação carnal, acenando-lhe frivolamente com emoções de felicidade da ultrapassada dimensão carnal.
                  Isto decifrado e bem resolvido prossegue o seu caminho, no comando de seu corpo causal. E por aquela rua escura e desconhecida, porém ciente de que se encontrava ao norte daquele arcaico e remoto bairro; pois quando ao dobrar a primeira curva à direita, deparar-se-ia com outra estranha casa, cujo letreiro de plástico escuro e de mau gosto estético ostentava familiares palavras em amarelo ovo: “Casa da Fé”. Parou, por instantes, mas não sentiu fé ali em coisa alguma. Momentaneamente sentira até o astral muito pesado e denso do que poderia ser medo e desconfiança aí gerados. E sentiu mesmo uns arrepios, ao deixar-se levar àquele remoto passado...
                  Mas aprendera a exercitar a vontade e a superar a antiga e cega fé e facilmente recupera o equilíbrio por ser o senhor de si mesmo, e de ter o seu eixo bem fundamentado em dimensões universais. Era o dono absoluto da sua vontade. E porque reconhecesse as marcas de todos os elementos terrestres por onde tenha andado e se criara, tal como está impresso em seu estado de consciência causal, para além do cérebro, sabia... Não obstante este seu superior estado, é natural sentir ainda saudade diante dos símbolos da sua infância humana, na terra.
         Sereno segue em frente, como não poderia ser diferente, para não voltar no tempo nem no espaço, sem se esquecer que ao dobrar ainda há pouco à direita lançara olhares à esquerda... E aí viu num painel vermelho muito estranho, com palavras escritas em amarelo deveras muito confusas numa combinação absolutamente duvidosa – amarelo ovo, sobre o vermelho – efeito estranhíssimo da forma estética corrompida de uma estrela ilegítima de cinco pontas. Muito mal composta com formas corruptas, “ainda que essa estrela represente o sagrado em outra circunstância”. (todas as estrelas, pouco importa o número de pontas) têm lugar na simbologia sagrada. Mas esta, pelo aspecto que lhe causara não possui coisa alguma séria nem sagrada, sequer era digna de se olhar mais de uma vez. Não ligou então muito à esquerda com a sua estrela vermelha, e seguiu em frente sem dar qualquer importância ao fato de ter também dobrado à direita.
                  Prosseguindo seu destino meio sem destino, não demoraria muito a se defrontar com um pomposo edifício, ao qual identificava emblemática placa de bronze escrita em amarelo ouro e muito bem lustrada em letras góticas, a palavra “Magistério”. Mas, “Magistério com reticências na frente?” (...) Estranho, estranhíssimo lhe parecera aos olhos e ao seu princípio do mental abstrato! O que isso significa? Magistério? Quais seriam afinal os valores maiores e ocultos daquela incógnita? Mas como lá não vira ninguém, seguia ele desprendido e leve o seu caminho. Porém, logo na primeira esquina encontra uma marca importantíssima: Uma confeitaria com o nome do Poeta Mor. E a caráter, como logomarca, uma régia coroa...
                  Finalmente reconhecia os símbolos e se encontrava geograficamente... Virando seu olhar à esquerda, avista algo familiar em uma pizzaria, onde entra prontamente; deparando-se com uma fotografia de um disco voador pendurada acima e atrás do caixa na parede. Lembra-se de já ter visto antes aquela foto em sonho, reconhecendo também aquele local em que sonhara com o Adepto, vestido de “Mestre de Gastronomia”. (Adepto é, para quem não sabe um iluminado ser) Porém a pizza é real, de massa de pão, tomate, mussarela e o alho frito. De alho frito, de excelente sabor. E ele invisível posiciona-se ao lado do casal que a pedira, e saboreia a parte astral daquela delícia. Certamente mais saborosa do que a verdadeira e material, cujo cheiro o atraíra e a saboreava agora com superior paladar, sem interferir nos elementos moleculares de peso, consistência, materiais e massa...    
                  Borges é quem fabrica as pizzas, apresentara-se ao casal, por justiça de boa qualidade, num bairro que reconhecia como “Bexiga”...
                  Alta madrugada, uma hora e meia da manhã, naquela altura já manhã seguinte; terminada a refeição astral e encerrado o processo de saborear sem ter de pagar, porque também de verdade nada comera, segue madrugada adentro a lamentar não ter sido no interior de um navio, em vez de naquela pizzaria o sonho que tivera com o Adepto vestido com a roupa de mestre internacional de cozinha, tal a nobreza de seu chapéu...
                  Consciente agora daquele antigo e magnífico sonho que tivera quando vivia ainda na carne, segue seu destino recolhendo dados, constatando fatos, descobrindo coisas, observando à sua volta os objetos e a senti-los através de uma ótica nova, astral; todavia, ainda que tivesse essa possibilidade, sem mexer nem bulir no habitate natural de cada espécie, respeitando cada ciclo de vida e sem urinar fosse num portão alheio, fosse num simples tufão de grama e muito menos num especial lugar, onde as pessoas guardam seus mais íntimos sentimentos, e as suas mais belas recordações... Enfim, sem urinar em lugar nenhum, exceto em local apropriado do qual já não necessitava.
                  E segue o seu destino desviando-se não só do pipi, mas também de objetos sólidos e malcheirosos abundantes pelos caminhos da noite, neste e em todos os bairros do mundo. E embora seja um ser virtual por viver no plano causal sente a fadiga e o desconforto da vida do lado de cá, sente o peso do “corpo” cansado, o mau cheiro das ruas, e as cenas noturnas dos tristes e desgraçados excluídos... Graças a estar do outro lado, não será aí importunado; nem pelos mendigos alcoólatras na grande maioria, nem pelos pobres mendigos daquele e de todos os bairros do mundo cheirando mal, todos esfarrapados, todos com fome; e quem desgraçadamente consiga uns tostões, embriagado!
                  Ele, habitante do Astral, mas não alma penada ou kamarrupa, Exu, enfim, nada semelhante à alma mal assombrada: é, ao contrário desses um vitorioso, um dos poucos que dedica sua vida a colher experiências num plano intermediário, já sem o físico carnal; mas com uma veste apropriada construída por ele mesmo ao longo do tempo, o seu Corpo Causal, podendo inclusive passar de um a outro lado, até “comer pizza”; e se o quiser deixar-se ver pelos vivos de cá por alguns momentos.
                  Abriu mão de viajar na velocidade do pensamento para manquejar das pernas aqui na terra, com as suas conseqüências...
                  Segue então e desce a Rua 13 de Maio no sentido centro da cidade, repentinamente parando na esquina com a Rua Santo Antônio, para rever ali cenas memoráveis de um “livro” seu do passado... Noites de um tempo em que era ainda humano, vendo ali agora alguns de sua época ainda presos que já nem estão na carne! Vivem do mesmo lado que ele em berço etéreo de belíssimas ou terríveis ilusões, inconscientes, ou andam ainda por ali sem saberem que já morreram. Enquanto ele já não vive essa “morte” aonde vão os inocentes... Possuía um corpo superior, o seu Corpo Causal.
                  Desfruta sua primeira experiência de vida metafísica consciente, podendo e muito bem raciocinar; coisa impossível para quem não tenha um cérebro! ...
                  Após breve deleite da memória segue em frente, desta feita sem interrupções até o centro da grande metrópole, de praças belíssimas, amplas e bem iluminadas; porém, infelizmente muito mal freqüentadas; tanto por uns na carne, mas sem lei e sem nada, bem visíveis e fedorentos, quanto por outros sem carne, mas com pesadíssima matéria do baixíssimo plano astral, interativos, mas invisíveis aos da carne...
                  A luz da noite, artificial, começa a ser ofuscada pela luz do dia, quando amanhece na maravilhosa cidade – São Paulo. Ele, invisível, senta-se num banco antigo da pequena praça, que marca o cruzamento da Avenida São João com a Rua São Bento. Naquele divino canto, onde o tempo clicou cenas maravilhosas e ergueu edifícios magníficos, tal como a bolsa de valores. De repente as ruas enchem-se de gente e a cidade ferve ao ritmo paulistano, que a não respeita o déspota vigarista, o prefeito [a] miserável, o punguista das esquinas, o sonegador, o camelô, o malfeitor das cidades grandes... Por regra por culpa de incapazes administradores, corruptos e indignos governantes, todos auxiliados por incompetentes membros de uma máquina velha e já muito alquebrados os seus braços, a um canto encostada, não obstante o ar condicionado e o mais moderno computador, com as bênçãos das câmaras de vereadores, deputados e senadores a legislar... Muitos com impressões digitais com a direita, enquanto com a esquerda enfiam não se sabe bem onde, para disfarçar o que à noite fazem com as duas... Alguns nem com as duas juntas agarram muitas coisas, por serem mãos inábeis, grosseiras, mas outros com um simples dedo transformam a comida pobre dos pobres em ricas “polpas verdes” em qualquer banco e no conforto sentados à sombra da ilegalidade e aí se encostam e depois deitam e dormem. 
                  Levanta-se daquele banco onde por momentos esteve sentado a matutar estas coisas, quando se dirige ao interior da loja da esquina, onde se defronta com um enorme espelho; sem levar já nenhum susto ao ver-se como era tempos atrás, quando ainda vivia na carne com a idade de 40 anos, no início da década de 80. Sim, 1980 era o tempo em que por ali andara!
                  Saudade? Um pouco; contudo colorida e feliz de quem recorda sem sentir mágoas, medos, dor, mas também sem estar no plano do supremo mel ou Nirvana feliz gozando as delícias dos falsos deuses, pois Deus verdadeiro tem muito a zelar no seio do seu próprio ser, aonde vão inúmeras “ninhadas”; entre elas um duplo animal, seguida de perto por outra vegetal e junto outra mineral em um grão de areia muito agradável chamado terra e dentro deste universo, para aonde a galáxia vai viajando.
                   Olha novamente no fundo dos seus olhos, e a seu lado por não ser visto vê muitos outros espelhando as suas vaidades e brejeirices. E lembra-se então do sonho que tivera com o Adepto, quando este lhe mostrava cenas de seu país através de enigmática peça teatral, cujos personagens tornar-se-iam reais no futuro, mas que agora já são passados.
                  Via todo festivo um psiquiatra com a camisa olímpica, mas apaga-se rapidamente a cena, passando a outras não tão estranhas, mas deveras tristes. A estas nem é preciso descrever, que todos as vêem e ouvem diariamente na televisão...
                  Muitas cenas horríveis ele veria ao se defrontar com a foto de outro edifício monumental, onde letras a ouro compunham a palavra Congresso... Era também esta palavra seguida de reticências, mas já agora sabia ele o significado das reticências ali na frente desse Congresso... Sempre estranhara estas reticências, embora por estes três pontinhos tivesse grande respeito; mas desta feita, diante desses emblemas públicos: Magistério e Congresso com reticências na frente, não fora capaz de decifrá-los, mas sua antiga malícia revela-lhe com astúcia o que ali não se faz nem se cumpre... Seria então naqueles dois edifícios onde ele viu “RETICENCIADOS” um lugar onde se não faz nada?  
                  Volta ele novamente ao presente e mais uma vez olha no espelho onde vê refletidos os seus próprios olhos, quando percebe descer pelo olho esquerdo uma lágrima. Simbolizava essa lágrima um distante estágio de evolução, que milhões de seres sentem ao vivo na carne, com dor, fome, injustiça, mas ele mais a decantava do que a sentia... Mas não foi também capaz de sorrir, nem mesmo ao recordar uma linda flor se abrindo, nem mesmo quando a bela flor se transformara em uma linda donzela sua aos beijos, quando recorda agora os seus amores do passado. Nada o fizera sorrir, ao olhar no espelho. Cerra então os olhos mais uma vez, e ao mergulhar no âmago do seu verdadeiro ser, vê refletidas no espelho em amarelo ouro, as velhas reticências...
      

                                                                                                                         

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