segunda-feira, 4 de fevereiro de 2013

QUEM ANDARÁ POR TRÁS DAS VESTES?


O Tocador de harpa

Se as flores do jardim alheio não têm o mesmo perfume das flores do jardim que nem temos, sim, não temos um jardim, qual será, então, o perfume que sentimos? Será o jardim que não temos o nosso único jardim que não temos com o seu perfume?

Mas porque as flores do jardim alheio cheiram-nos a um perfume estético artificial e é a sua beleza duvidosa? É-nos uma espécie de fruto sem sabor à nossa ética de egoístas, desdenhadores de jardins e flores alheios?

Já o Tocador de Harpa, que tocava apenas Harpa amava todas as flores dos jardins alheios, porque as via do silêncio da sua humildade e as amava sem tocá-las; acariciava-as com o olhar, como se fossem todas as flores do mundo de ninguém, nem suas... Nunca uma flor lhe pertencera, e nunca tivera, por menor que fosse, uma casa; que dirá um jardim! Era só um tocador de HARPA e ninguém sabia de sua existência. Só raramente, quando tocava enquanto solista da orquestra era alguém, a tocar uma Harpa.

Houve o tempo em que sua Harpa possuía um estranho H dourado, mas hoje já se apagou; perdera já o seu H ficando consigo apenas o instrumento envelhecido pelo tempo. E naturalmente sempre destras as suas mãos habilidosas de adorável músico, ao fim apenas mãos, que eram tudo em sua vida; e a sua arte e a sua Harpa a essência de sua alma. E o seu amor, o amor por todas as flores alheias. E porque nenhuma lhe pertencesse, estranhamente essa era a sua inspiração porque ainda tocasse a sua Harpa.

E ao voltar para o seu esconderijo, que nem casa era, passava em frente do jardim alheio, e às flores poderia imensamente amá-las, por andar a maior parte do tempo invisível. E só alguns o viam quando tocava sua Harpa. Jamais soubera seu nome alguém que não pertencesse à orquestra, cujos membros mal olhavam para ele.

Ao morrer soube-se ter morrido o tocador de Harpa, que outrora tivera um H maiúsculo gravado no corpo de seu instrumento; mas jamais alguém soube ou procurou saber por que a sua Harpa possuía um H... Pois nem aquele estranho H maiúsculo fez que alguém lhe prestasse atenção. Maiúsculo algum jamais lhe pertencera. Seria, então, natural que ninguém soubesse o seu nome! Aquele pobre homem apenas tocava um instrumento de orquestra, já agora sem H maiúsculo nem minúsculo!

Talvez, para si mesmo, em sua dignidade universal risse silenciosamente. Ou talvez não, por humildade. Quem sabe até nem tivesse consciência de sua hierarquia! Mas aqui, nesta dimensão igualitária onde todos são semelhantes, ter maiúsculos não os garante no céu!... E ele intuitivamente sabia disso. Conquanto o seu amor incondicional por todas as flores alheias, e dizem que, quem ama as flores também ama as crianças sem as querer modelar à sua imagem, para não tocá-las com as mãos mundanas.

Este nobre sentimento e a sua arte faziam dele do tamanho dos maiores. E no mínimo entre menores era de longe o melhor, e um grande ser deveras haverá de ter sido. Mas no dia certo, que aos homens não compete saber, partiu...

E ao morrer deixara órfãs todas às flores e sua arte de tocador de Harpa calara-se para sempre. E a um canto pobre de um quarto miserável onde pobremente vivera, repousa agora triste e silencioso o seu instrumento... O senhor e mestre que o honrava quando o tocava, morreu. Mas para muitos sequer existiu! Entretanto amar como ele amou a todas as flores e tocar como ele tocava a sua Harpa, quem mais que ele viveu?

Quem nunca o vira e jamais soube da essência espiritual das flores e da música que nunca mais se há de ouvir? Não! Não! Viram-no só uns poucos por breves instantes quando solista da orquestra. No mais se perdia entre os sons o som da sua Harpa, e entre os olhos os seus olhos sem um rosto, sem ninguém neles ter olhado. Jamais despertara um brilho de admiração, nem mesmo lágrimas; de “quem?” Não. Só as flores o conheceram, e até sorriram para ele, assim como sorriam as crianças. E agora de tão tristes, muitas se despetalaram e o seu perfume se esvaiu pelo ar.


3 comentários:

  1. Enfim, leva com ele (é parte inerente
    dele) mais que muitos podem alartear:

    "... E a manhã nasceu azul. Como é bom poder tocar um instrumento."

    Tigresa - Caetano Veloso

    __/\__ (gasshô) Sir Juliot, Norma

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  2. Ah! Eu esqueci:
    Tocar também é uma arte solitária que dá grande frutos longe dos olhos alheios. O prazer de tocar e para si(aspecto que ele podia usufrir, pelo instrumento escolhido)como plateia refinada. O 'outro' foi as flores, que seu cerébro aprendeu a reconhecer as imagens e aromas e as impressões das formas e cores lidas pelo seu nervo ótico. Ninguém tira, furta ou rouba.Vai no 'pacote'pro (harpa?)... pro céu. Mas céu prá que, se ele já o tinha ganho em vida e só não sabia?

    Nac♥

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  3. Verdade, minha amiga Norma, pra quê céu? ele só continuou nele, porém mais leve...
    Por falar em tocar, vou tocar minha gaitinha logo mais ao luar, e não será tão solitário assim, se acaso a lua vier...
    Há tanto poesia numa nota musical que se se juntassem Camões e Beethoven o mundo se iluminaria... Será? Bem, tudo é relativo mas a poesia precisa resistir.

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