O Tocador
de harpa
Se as flores do jardim alheio não têm o mesmo perfume das flores do
jardim que nem temos, sim, não temos um jardim, qual será, então, o perfume que
sentimos? Será o jardim que não temos o nosso único jardim que não temos com o
seu perfume?
Mas porque as flores do jardim alheio cheiram-nos a um perfume estético artificial e é a sua beleza duvidosa? É-nos uma espécie de fruto sem sabor à nossa ética de egoístas, desdenhadores de jardins e flores alheios?
Já o Tocador de Harpa, que tocava apenas Harpa amava todas as flores
dos jardins alheios, porque as via do silêncio da sua humildade e as amava sem
tocá-las; acariciava-as com o olhar, como se fossem todas as flores do mundo de
ninguém, nem suas... Nunca uma flor lhe pertencera, e nunca tivera, por menor
que fosse, uma casa; que dirá um jardim! Era só um tocador de HARPA e ninguém
sabia de sua existência. Só raramente, quando tocava enquanto solista da
orquestra era alguém, a tocar uma Harpa.
Houve o tempo em que sua Harpa possuía um estranho H dourado,
mas hoje já se apagou; perdera já o seu H ficando consigo apenas o instrumento envelhecido
pelo tempo. E naturalmente sempre destras as suas mãos habilidosas de adorável
músico, ao fim apenas mãos, que eram tudo em sua vida; e a sua arte e a sua Harpa
a essência de sua alma. E o seu amor, o amor por todas as flores alheias. E
porque nenhuma lhe pertencesse, estranhamente essa era a sua inspiração porque
ainda tocasse a sua Harpa.
E ao voltar para o seu esconderijo, que nem casa era,
passava em frente do jardim alheio, e às flores poderia imensamente amá-las,
por andar a maior parte do tempo invisível. E só alguns o viam quando tocava
sua Harpa. Jamais soubera seu nome alguém que não pertencesse à orquestra,
cujos membros mal olhavam para ele.
Ao morrer soube-se ter morrido o tocador de Harpa, que outrora tivera
um H maiúsculo gravado no corpo de seu instrumento; mas jamais alguém soube ou
procurou saber por que a sua Harpa possuía um H... Pois nem aquele estranho H
maiúsculo fez que alguém lhe prestasse atenção. Maiúsculo algum jamais lhe
pertencera. Seria, então, natural que ninguém soubesse o seu nome! Aquele pobre
homem apenas tocava um instrumento de orquestra, já agora sem H maiúsculo nem
minúsculo!
Talvez, para si mesmo, em sua dignidade universal risse
silenciosamente. Ou talvez não, por humildade. Quem sabe até nem tivesse
consciência de sua hierarquia! Mas aqui, nesta dimensão igualitária onde todos
são semelhantes, ter maiúsculos não os garante no céu!... E ele intuitivamente
sabia disso. Conquanto o seu amor incondicional por todas as flores alheias, e
dizem que, quem ama as flores também ama as crianças sem as querer modelar à
sua imagem, para não tocá-las com as mãos mundanas.
Este nobre sentimento e a sua arte faziam dele do tamanho dos maiores.
E no mínimo entre menores era de longe o melhor, e um grande ser deveras haverá
de ter sido. Mas no dia certo, que aos homens não compete saber, partiu...
E ao morrer deixara órfãs todas às flores e sua arte de tocador de Harpa
calara-se para sempre. E a um canto pobre de um quarto miserável onde
pobremente vivera, repousa agora triste e silencioso o seu instrumento... O
senhor e mestre que o honrava quando o tocava, morreu. Mas para muitos sequer
existiu! Entretanto amar como ele amou a todas as flores e tocar como ele
tocava a sua Harpa, quem mais que ele viveu?
Quem nunca o vira e jamais soube da essência espiritual das flores e da
música que nunca mais se há de ouvir? Não! Não! Viram-no só uns poucos por
breves instantes quando solista da orquestra. No mais se perdia entre os sons o
som da sua Harpa, e entre os olhos os seus olhos sem um rosto, sem ninguém
neles ter olhado. Jamais despertara um brilho de admiração, nem mesmo lágrimas;
de “quem?” Não. Só as flores o conheceram, e até sorriram para ele, assim como
sorriam as crianças. E agora de tão tristes, muitas se despetalaram e o seu perfume
se esvaiu pelo ar.
Enfim, leva com ele (é parte inerente
ResponderExcluirdele) mais que muitos podem alartear:
"... E a manhã nasceu azul. Como é bom poder tocar um instrumento."
Tigresa - Caetano Veloso
__/\__ (gasshô) Sir Juliot, Norma
Ah! Eu esqueci:
ResponderExcluirTocar também é uma arte solitária que dá grande frutos longe dos olhos alheios. O prazer de tocar e para si(aspecto que ele podia usufrir, pelo instrumento escolhido)como plateia refinada. O 'outro' foi as flores, que seu cerébro aprendeu a reconhecer as imagens e aromas e as impressões das formas e cores lidas pelo seu nervo ótico. Ninguém tira, furta ou rouba.Vai no 'pacote'pro (harpa?)... pro céu. Mas céu prá que, se ele já o tinha ganho em vida e só não sabia?
Nac♥
Verdade, minha amiga Norma, pra quê céu? ele só continuou nele, porém mais leve...
ResponderExcluirPor falar em tocar, vou tocar minha gaitinha logo mais ao luar, e não será tão solitário assim, se acaso a lua vier...
Há tanto poesia numa nota musical que se se juntassem Camões e Beethoven o mundo se iluminaria... Será? Bem, tudo é relativo mas a poesia precisa resistir.