Conversando silenciosamente com as notas de um jornal
velho, constatei que as arcaicas sanhas eram já bem parecidas com os últimos
códigos políticos modernos.
Os termos suavizados pelos editores não escondiam por detrás
as personagens embrionárias que viriam a se tornar as atuais hienas ferozes; e
as intenções mauras nas suas palavras demagógicas em tom suave, revelavam aquele
tempo a razão de hoje tantas crianças desnutridas e filas intermináveis de
desamparadas vítimas da saúde pública, movendo-as às lágrimas em desespero.
Mas o que mais me chamou a atenção foi sem dúvida a cara
de alguns, que mesmo sem fotografia escarneciam rindo e prometendo, e um com
fotografia ainda jovem, barbudo sindicalista, parecia trazer escrito na testa o
que viria a revelar-se depois.
O jornal de tão velho amarelou pálido, e já prurido
remeteu-me ao velho código de Hamurabi, do qual trazia umas notas em referência
a um passado há muito sepultado, quando a justiça tardava, mas não falhava.
E a velha igreja de Pedro que em outra nota rememorava não
a de Roma, mas a de certo tal não se sabe o quê de uma estranha igreja recém
lançada no mercado, àquela altura, e hoje já meio vovó convertida em palácio de
mármore por fora, e falsidade e traição em ouro por dentro...
Semelhante a tantas que ora abundam para todos os níveis,
e de preferência para os sem nível nenhum...
Não foi possível folhear todas as páginas, devido os altos
índices de ácaros e outros fungos, inclusive os abstratos que as notas
revelavam; mas como a primeira página trouxesse quase todos os assuntos de suas
páginas internas, por osmose e dedução vi quase tudo escrito em preto e branco,
ou melhor, dito preto e marrom escuro...
Lamentei deveras a sorte daquele velho jornal, por tamanha
carga de vermes e contaminação. Mas refiz meu juízo, pois se tratava apenas de
um papel escrito com as já letras frias mortas, embora tão vivas quanto
opostamente as mortes que causaram revelassem em abstrato as nunca dantes vistas
tão concretas neste país de hoje!
Escondidas devido o tempo já sepultado, as vítimas continuam
insepultas... Enquanto muitos algozes ainda vivos riam como caricaturas
políticas de todos os tempos, tais como as de agora dissimuladas, falsas e
corruptas às gargalhadas de ironia.
Para espantar-me de vez e salvar da ruína total aquele
velho jornal, quase milagrosamente no canto esquerdo inferior lá estava a
redenção suprema daquele velho matutino, numa pequena nota: “Concerto número
vinte e um de Mozart”, ainda que, um comentário deveras inútil dizia que
“duzentos anos depois da sua morte não fazia diferença se o Gênio Mozart havia
composto sua primeira sinfonia aos oito anos”... Bem, isto não merece nem comentário.
O fato é que, de repente, Mozart e outros poucos desta magnitude existiram, e a
sua música eternizada está em variadas formas de registro. Inclusive no velho e
decadente jornal, tão cheio de corrupções e ácaros. E como um lótus numa ilha
de fungos, sobressaía-se em pequena nota a magnífica imagem do grande Mozart,
para acalentar-me, ainda que minimamente, quando o desalento já me tombara pelo
desgosto.
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